sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Sem curso superior

Meu pai não terminou o ginásio (o que hoje corresponde ao 1º grau). Era um homem inteligente. Mais do que isso: sabia que sempre há o que aprender e que a vida se faz fazendo. Falava cinco línguas e arranhava, sem pudor, qualquer uma que fosse necessária para fazer um negócio. Como um bom judeu, adorava negociar. Era sua natureza e seu dom. Assisti-lo numa negociação será para sempre uma das minhas lembranças mais carinhosas. Eu seria incapaz. Trabalhou em trocentos ramos, ganhou muito dinheiro e perdeu mais ainda, mas adorava negociar - a camisa na loja, o carro com o "patrício", fornos gigantes para grandes metalúrgicas, sistemas ecologicamente corretos para tratamento e economia da água. A alma da coisa era negociar. Fazia isso com um prazer e com uma astúcia que jamais esquecerei. Adorava jazz e música clássica e teve uma das coleções mais fantásticas que já vi. Viajou o mundo. Adorava ler. Lia sempre e muito. E, adorava contar piadas. Era excelente nisso - um típico judeu.
Ontem, numa daquelas conversas sempre agradáveis e divertidas com o Carlinhos Brickmann, ele largou. "Bom, Cuca, você ainda tem curso superior, mas, como digo, o Koscho e eu, que nem isso temos, não tínhamos outra saída senão ser jornalista". Genial!
Nada contra estudar.
Mas, não pude deixar de pensar que era absolutamente fantástico que esses dois jornalistas (e vários outros dessa geração) não precisaram de toda essa montanha de cursos (superior, MBA, mestrado, doutorado blábláblá) para escrever super bem, ter olhar jornalístico, ética em seu trabalho e sentir a notícia de longe, não o relato do óbvio, a notícia. Concordando ou não com a posição deles em seus artigos, é inegável a qualidade do trabalho. Também eu não sou formada em jornalismo, como muitos da minha geração. Somos, eles e nós, jornalistas porque sim. Diria até que, embora façamos isso com gosto e seriedade, não escolhemos: a vida nos levou para o jornalismo porque, de fato, somos jornalistas. Não havia glamour na profissão quando chegamos. Eles antes de mim, e nem em sonho compararia a competência e a qualidade deles com os da minha geração. Em geral, escrevíamos bem. Pelo menos não odíavamos a língua portuguesa, pelo contrário. Todos gente que adorava ler, lia tudo que passava pela frente, acreditava que a informação permite a escolha e que ser correto, honesto e justo é nossa escolha de como estar no mundo.
De uma certa forma, o mundo era mais simples: era jornalista quem "nem tinha curso superior", mas levava um certo jeito para coisa, tinha o dom da palavra, o gosto pela notícias e um código de ética com a vida.
Vejo - muito mais do que gostaria - uma montanha de gente, com curso superior, MBA, mestrado, que claramente odeia a língua portuguesa, foge da notícia como o diabo da cruz, nunca passa, por sua cabeça e/ou coração, a mais leve preocupação com o leitor, e o compromisso com a verdade deve se algo que sequer lhes ocorreu. Muitas deles, assim que os vejo trabalhando, tenho uma enorme vontade de dizer: "meu querido, você é novo, escolhe outra profissão", de coração.
O que não entendo é, como diz uma amiga: "Jornalismo é escolha; ser balconista é que é contingência. Então se odeia a língua, acha uma chatice ler, passa semanas sem folhear um jornal e reclama toda a vez que acontece algum fato que obriga horas a mais de trabalho, por que raio escolheu jornalismo?"

Um comentário:

Anônimo disse...

Cuca,

que texto bacana!!

sabia que eu me arrependo de ter estudado jornalismo? sim, pq desde sempre sabia que seria isso mas, moleque, optei pelo curso para me "regularizar" numa época em que ainda havia a burra exigência do diploma. Ah, se o tempo pudesse voltar...

bjs
ALEC